conto na carta...

Véspera de Natal, em frente a uma escolinha, sentados num banco trocávamos nossos presentes... Presenteei-te com um bom livro sobre mitologia grega e fui presenteado com um retrato. Com este, não parei de praticar um olhar fixo em teus olhos, não parei de te olhar... Uma colega do teatro posava entre nós, e isso impede que eu possa ter a sensação de te abraçar... Foi outro presente maravilhoso que ganhei de ti, tão efêmero, a pequena leitura de um livro que já veio com marcadores nas páginas. Lemos um capítulo que era uma carta escrita pelo autor, destinada a um amigo que aspirava a escritor. E lemos outro, que era um conto... Foi perfeito! Também pude falar sobre algo que estremeceu meu chão – um longo período de realizações de trabalho que terminou quando me sentia incapaz de continuar... Estavas lá quando eu mal sabia onde estava. A impressão que tenho é que agora realmente vês o que meus olhos filtram – minha própria alma... Concordamos: parece que nos conhecemos melhor, sem ilusões ou idealizações... E quanto a tudo que me revelaste da tua personalidade, só posso dizer que engrandece sobretudo minha admiração por ti.
Depois do encontro com essa pessoa carinhosa que és, ainda me aconteceram incríveis coisas... Fui pra casa da minha tia, e ela jogou cartas de tarô. Tantas incríveis coisas ouvi... Ela mesma achou muito bonita minha história... Não sei contá-la aqui, mas tem algo que ficou patente – meu desejo de reconhecimento pelo meu trabalho. E como eu deveria agir? Deveria realizar meu trabalho pelo trabalho, não pelo reconhecimento... Minha tia me fez cair em lágrimas... Falávamos de meu finado avô... Lembrávamos que eu era seu netinho querido... Meu avô – parece que sabia que aquela criança raquítica que acabara de tratar uma pneumonia aguda viria a ser esse sonhador que sou... Queria tanto poder aprender mais da tua sabedoria, vô!
Aí, caminhei na noite... Encontrei pessoas vestidas de vermelho num afinado coro natalino, e reconheci meus amigos através daquelas postiças barbas brancas... Estávamos embebedados e cantávamos... Incomodávamos... Quando paramos de cantar, recebi um último presente – as mãos dos meus amigos... Formávamos um círculo tão harmonioso... E oramos... Não sei se tinha fé naquele momento, mas precisava... E fui...
Atravessei um enorme parque e no meio do caminho percebi que eu andava por lugares inéditos... Uma notívaga criatura me assustou com seu vôo rasante. Parecia que me corujava. E eu já afogado em vinho supus que pudesse ser um presságio... Assimilei as lembranças do meu avô com meu desejo de ser reconhecido. Ali estava atenta uma criatura que exaltava minhas qualidades e que temia algo em mim ameaçador... Cheguei mais perto do bichinho, e consegui ver talvez um cansaço no seu rosto. Acho que o lugar que o bichinho queria era mais quieto e sem aquelas lusinhas coloridas de Natal – não creio que estivesse vislumbrando aqueles pisca-piscas. Eu soube muito bem apagar todas aquelas lâmpadas, desligando um único interruptor... Quis dar um conforto à coruja, e senti mesmo uma irmandade... Àquele campo dei o black-out... E não vi mais nada a não ser os quase invisíveis fechos luminosos dos seus pequeninos olhos. Lentamente minhas pupilas se dilataram, e pude ver Eu através daquele olhar atencioso... Percebi que eram meus sonhos o que atraía tanto aquele olhar... Pude antecipadamente sentir na pele a concretização de todos eles... Agora sabia que pra seguir meu caminho precisava aprender lições, e pra isso, a coragem era a principal virtude... medo? Eu tinha... antes daquele olhar...
E segui novamente meu caminho pra casa... Embevecido de tantas portas abertas da minha alma, sem pressa, pensava um esboço de um projeto de vida... Reconheci que meu anseio exacerbado me padecera... E agora eu me curava do anseio... Parece que me desprendi dos novelos emaranhados, me despertando dos meus labirínticos sonhos... já posso sonhar acordado...
Bom, Ju, entendi sim que devo continuar audaz na minha busca... e que sempre ecoará meu coração... terminam aqui as incríveis coisas que tinha pra falar... parece até que não aconteceram, mas aconteceram sim... foi uma viagem da minha cabeça que aconteceu sim... claro que o campo que atravessei não era mais que um jardim de uma quadra vizinha, mas tinha lá uma coruja, e realmente tive uma simpatia por ela... depois fui pra casa tranqüilo e chapei... mas meu medo ficou lá, irresgatável, naquele instante que existiu e que não poderá ser sentido nem mesmo através da minha memória...
(Natal de 2005)
última edição paramnésica - 08/01/09